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terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Uma biblioteca encaixotada



Por Joca Reiners Terron
All my worldly possessions...
1.
Escrevo em meio ao caos de uma mudança de endereço. Será minha vigésima quarta casa em 45 anos. Ao contrário do que possa parecer, odeio me mudar. Se minha biografia fosse um mapa, teria esses tantos pontos assinalados rodeados por um oceano de amnésia. Viver pouco tempo num lugar não permite estabelecer relações necessárias para que o afeto construa suas pontes, assim o passado cai facilmente no esquecimento, deixando espaço para a imaginação trabalhar. Não tenho amigos de infância, portanto não existe ninguém que possa me desmentir.
2.
O primeiro trauma da mudança está relacionado aos livros. Descobri que na casa de meus pais havia uma biblioteca somente quando foi encaixotada. A falta dela me fez descobri-la, entender que dependia dos livros. O trauma se deve ao fato de os livros serem os primeiros objetos da casa a serem encaixotados e os últimos a serem desencaixotados. Uma biblioteca encaixotada. Para mim não existe outra imagem que melhor defina a melancolia.
3.
Existe, sim. É a imagem de uma caixa de livros em chamas num terreno baldio e eu sentado em cima de um muro, observando-a. Minha mãe ateou fogo aos livros. Ela está mais calma agora, e olha impassível o bruxulear do fogo. Também olha de rabo de olho para mim, talvez arrependida, mas não devolvo o olhar. Minha atenção está inteiramente voltada aos livros em chamas. Ouço os pedidos de socorro de Marco Vinício e Lígia, protagonistas de Quo Vadis, o romance de Henryk Sienkiewicz que estava na caixa. Ambos sobreviveram ao incêndio de Roma causado por Nero, porém não à TPM de minha mãe.
4.
Melhor esquecer esse assunto.
5.
Desta vez optei por encaixotar eu mesmo os livros. A desculpa é limpá-los e fazer uma triagem para descarte, a verdade é que os custos dessas mudanças completas em que carregadores vêm e embalam tudo em segundos estão altos demais, bastante além de meu orçamento. Me demoro a reler passagens de romances. Ganho coragem e jogo fora toda uma coleção de suplementos culturais de jornais. Recebo aplausos pelo desapego. Antes de fechar a porta, dou uma última paquerada na pilha de papéis fedorentos no corredor. A luz automática apaga, encosto a porta e a abro de novo. Retiro um exemplar do Babelia. Leio um trecho de entrevista com um autor que admiro. Volto para dentro de casa com o suplemento dobrado sob o braço. Uma voz resgatada do incêndio. De cinco em cinco minutos espio através do olho mágico da porta para ver se alguém levou os jornais.
6.
Lembro de minha infelicidade ao não encontrar um livro qualquer de que gostava ao chegar num novo destino. Acontecia com frequência, e existia algo de misterioso no sumiço daqueles livros amados. Teriam voltado ao lugar onde nasceram, a Oz, a Reykjavyk, a Budapeste? Iguais aos gatos, não admitiam abandonar sua antiga casa, extraviando-se no caminho? Carregadores letrados abririam caixas de livros e os leriam na estrada, confortavelmente embalados pelo sacudir da caçamba do caminhão? Seria possível que existissem caixas de livros que contivessem passagens a outras dimensões? Eu era ingênuo, não suspeitava das artimanhas perpretadas por meu Nero particular. Porém é melhor não falar mais nisso.
7.
Mudanças frequentes como as que vivi terminam por ocasionar limpeza excessiva na memória de um lar, são sempre boa desculpa para se desfazer de coisas velhas. Viver algum tempo num mesmo endereço, hoje eu sei, é um exercício de acúmulo na mesma medida em que mudar é exercitar o desapego. O que não explica muita coisa, pois já sou um sujeito bastante desapegado. Tenho duas calças, dois pares e meio de sapatos (perdi um pé não sei bem onde, suponho que no meio do caminho do nada para lugar nenhum) e cinco mil livros, todos encaixotados. Mas não por muito tempo.

* * * * *

Joca Reiners Terron é escritor. Publicou Curva de rio sujo e Sonho interrompido por guilhotina, entre outros. Pela Companhia das Letras, lançou seu último romance, Do fundo do poço se vê a lua, e relançou seu primeiro, Não há nada lá. Ele contribui para o blog com uma coluna quinzenal.

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